Encontro de elementos católicos e africanos na escultura de Agnaldo Manoel dos Santos

Tiago José Risi Leme

Texto da comunicação preparada para o XI Simpósio Internacional de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo - SIICUSP, setembro 2003.
Tiago José Risi Leme, graduando em Letras Clássicas da FFLCH-USP estagiário no MAE com bolsa COSEAS (2000-2001) e PIBIC/CNPq (2001-2003).


Esta comunicação trata da última fase do nosso plano de pesquisa acerca da escultura antropomórfica de madeira e das estatuetas procedentes da África conservadas no MAE-USP.

Nos dois últimos simpósios, apresentamos resultados das primeiras fases da pesquisa, isto é, os da análise dessas estatuetas, bem como a discussão do método etno-morfológico empregado nessa análise, e o estudo comparativo entre elas e peças similares existentes em outros museus do Brasil conhecidas por intermédio de publicações.

Agora, por último, com o objetivo de incrementar o desenvolvimento dos estudos da Arte Africana para maior compreensão da cultura religiosa e artística no Brasil, nos propusemos a analisar a escultura do artista baiano Agnaldo dos Santos (1926-1962) - por enquanto, sempre a partir de catálogos - de modo a estabelecermos correspondências entre os estilos ou traços estilísticos de algumas produções africanas e aquela do escultor brasileiro.

A obra conhecida de Agnaldo é essencialmente de madeira e antropomórfica, e marcada pela pluralidade temática: o artista se inspira seja nos temas católicos, seja nos da religiosidade afro-brasileira, ainda que os condicionantes técnicos e materiais de sua arte pareçam se aproximar mais dos da estatuária africana. Isso nos tem revelado distanciamentos, além de encontros africanos e ocidentais ou católicos em sua obra.

Estudamos em torno de 30 esculturas catalogadas de Agnaldo dos Santos e publicadas em AGNALDO 1988, PINACOTECA 1995 e MOSTRA 2000 (cf. bibliografia). É da primeira referência citada que extraímos a maioria dos dados sobre o artista que se seguem.

Agnaldo dos Santos, escultor baiano, nasceu em 1926, na Ilha de Itaparica, e morreu em 1962, em Salvador. Depois de haver trabalhado como lenhador e fabricante de cal de pedra, tornou-se ajudante e aprendiz no ateliê de Mário Cravo Jr., estabelecendo contato com os principais materiais e técnicas, formas e função, e fontes de inspiração da arte africana, bem como com artistas e intelectuais dos anos 1950.

Tem-se que a grande maioria da representação antropomórfica da escultura africana tradicional é de madeira, e a arte de Agnaldo dos Santos é preponderantemente desse material, de princípio fazendo uso da jaqueira, do ipê e do pau d'arco. Posteriormente, passou a utilizar o cedro, por recomendação de Francisco Biquiba Guarani, escultor de carrancas na região do rio São Francisco, depois de ter comunicado ao carranqueiro a infelicidade de saber que as esculturas que havia feito fendiam de alto a baixo.

Como procedem muitos artistas da África tradicional, Agnaldo faz uso de um procedimento para escurecer a madeira por meio de substâncias naturais e acaba tornando-a brilhante, densa e sensual.

A atitude hierática é uma constante nas estatuetas africanas de diversas procedências étnicas: olhos que expressam serenidade e, por estarem fechados, evocam um mundo extra-sensorial. Do mesmo modo, a postura de algumas esculturas de Agnaldo dos Santos causam no observador a sensação de que a figura se encontra num outro plano que não o material.

Há também certas temáticas utilizadas por Agnaldo dos Santos que são muito comuns na estatuária tradicional africana, de uma maneira geral. Tomemos como exemplo disso a escultura desse artista brasileiro chamada "Figura com Criança" da coleção Ladir Biezus. Ela nos remete às chamadas maternidade ou figuras mãe-filho - uma figuração presente na arte de diversas sociedades africanas, seja da África Central (como dos bakongo), seja da África Ocidental (como dos ioruba).

Uma outra obra de Agnaldo dos Santos, nomeada "Figura" (coleção particular), também pode ser associada à estatuária dos bakongo de outro modo. Esta figura sentada do artista baiano tem as pernas quase cruzadas e os braços flexionados, o esquerdo encontrando o direito em 90 e 120 graus respectivamente. Embora maciça e pesada, expressa uma flexibilidade na livre disposição e nas formas lineares dos braços e das pernas dos ntadi. Os ntadi são esculturas funerárias de pedra dos bakongo inspiradas, certamente, num outro tipo de escultura, de madeira, vulgarmente chamada "O Pensador". Essas esculturas, por serem de pedra, foram tidas de muitos séculos atrás. Mais tarde verificou-se que se trata de uma produção recente, baseada provavelmente nas estátuas tumulares ocidentais.

As esculturas denominadas "Oxossi" (Coleção João Marino) e "Oxossi Caçador" (Museu de Arte Moderna da Bahia) de Agnaldo dos Santos, também compartilham de um tema bastante difundido da estatuária bantu da África central: como as figuras do herói mítico Tshibinda Ilunga, o ancestral civilizador dos batshokwe, essas esculturas ostentam um chapéu característico, uma espingarda, entre outros bastões de poder.

Agnaldo dos Santos teve contato com algumas obras de arte vindas do Museu do Dundo, de Angola, por ocasião dos Colóquios Luso-Brasileiros, realizados na Universidade da Bahia em 1959. Não há entre nós documentos sobre o assunto, mas isso é historiado por Valladares (1983). Portanto, o fato de algumas peças de Agnaldo dos Santos parecerem dialogar com a estatuária de povos bantu, como assinala Munanga (2000), pode ser explicado pelo contato que Agnaldo teve, nessa exposição, com obras dos bakongo e dos batshokwe.

Por outro lado, a estatuária de Agnaldo dos Santos se distancia da africana, por diversas razões. Como afirma Clarival do Prado Valadares, a obra de Agnaldo "não pode ser entendida como filiação a uma determinada estilística regional africana: Agnaldo era senhor de meios expressionistas de absoluta originalidade". Assim, Agnaldo é detentor de um estilo único e particular: ele não procura obedecer aos cânones estilísticos de alguma sociedade africana, mas cria um estilo seu. No máximo, poderíamos encontrar nele características estilísticas mescladas da escultura da África como um todo.

Usando do método que aplicamos no estudo das estatuetas em madeira do MAE, obtivemos traços recorrentes nas peças de Agnaldo dos Santos, entre os quais destacamos:

1) Olhos em forma de folha, em alto relevo, contornados pelas pálpebras (11 peças).
2) Nariz triangular, em alto relevo (18 peças).
3) Lábios espessos, separados (7 peças).
4) Ausência de pescoço: a cabeça se une diretamente ao corpo (9 peças).
Esses traços ocorrem, por sua vez, em quatro grandes modalidades de figuração em sua obra que chamamos de:
1) Figuras de orixás (com emblemas).
2) Figuras de santos e reis (com manto esculpido).
3) Figuras sentadas.
4) Figuras de maternidade ou mãe-filho.

A partir do exame desses elementos, poder-se-ia dizer da presença de elementos africanos em sintonia com elementos ocidentais ou mesmo católicos. Assim poderiam parecer seus "santos", como são denominadas algumas de suas estátuas em atitude de prece, que, para o olhar ocidental, evocaria uma temática católica. Algumas dessas figuras, porém, apresentam marcas semelhantes às corporais de indivíduos das sociedades africanas tradicionais, à moda de escarificações rituais, e igualmente presentes na estatuária dessas sociedades.
Diante dessa breve análise, consideramos, então, que, independentemente de princípios estilísticos-morfológicos ou técnicos, o que aproxima a estatuária de Agnaldo dos Santos da africana é o fato de ser sua arte preocupada em tornar presentes elementos que estão além do mundo concreto e visível, ou seja, elementos que compõem um mundo ontológico, sensível, cognitivo e extra-sensorial. Por esse motivo, nas esculturas africanas, como nas de Agnaldo dos Santos, os traços fisionômicos das figuras, a proporção do corpo, da cabeça e dos membros divergem da proporção e fisionomia naturais ao corpo humano: a "disformidade" dessas esculturas está ligada à ausência de forma e materialidade das criaturas que integram o plano extra-concreto, e até mesmo sobrenatural.

E, o que difere a arte de Agnaldo dos Santos da arte africana é o fato de que o artista africano parte do elemento mítico, social, cosmogônico e político para esculpir suas peças, uma vez que a arte, para os povos africanos, está a serviço dos ritos e do grupo social, desempenhando uma função ritual ou social, como os ritos de iniciação, de fertilidade, de entronização. Com relação à produção do artista brasileiro, a preocupação plástica parece preceder a função ritual ou social, mesmo que integre aspectos da religiosidade em sua obra - seja ela católica ou afro-brasileira.

Bibliografia

AGNALDO dos Santos: esculturas. Salvador: Núcleo das Artes do Desenbanco, 1988.

MOSTRA do Redescobrimento: arte afro-brasileira = Afro-Brazilian art. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais: Fundação Bienal de São Paulo, 2000.

MUNANGA, Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é afinal? In: MOSTRA do Redescobrimento: arte afro-brasileira = Afro-Brazilian art. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais: Fundação Bienal de São Paulo, 2000. p. 98-111.

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Os Herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro: 300 anos de Zumbi. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo: Ministério da Cultura, 1995.

VALLADARES, Clarival do Prado. Agnaldo Manoel dos Santos: origem e revelação de um escultor primitivo. Afro-Ásia, n. 14, p. 22-39, 1983.