Sociedades tradicionais da África representadas no acervo do MAE: Senufo


Verbete elaborado por José Tiago Risi Leme, estagiário do MAE, 2000-2003,
editado do texto não publicado intitulado "Aspectos sócio-culturais da arte
e cultura das sociedades baulê, senufo, bambara e dogon", de 2003.

1) Dados geográficos e sócio-culturais.

Os senufo ocupam um território que compreende a Costa do Marfim, o Mali e Burkinafasso. Cada vilarejo vive concentrado sobre si mesmo, sem preocupações com o mundo exterior; os casamentos unem de preferência as linhagens de um mesmo povoado. Em casamentos que não unem linhagens de um mesmo vilarejo, a mulher casada continua a morar com sua família, vindo o marido encontrá-la duas ou três noites por semana; os filhos pertencem à linhagem materna.

O "mestre da terra" é um sacerdote, chamado a servir de intermediário entre o mundo visível e o invisível: a terra é divindade, não objeto de posse.

Todos os homens adultos fazem parte de uma instituição ou sociedade secreta chamada Lo, que tem a missão de comunicar o saber esotérico de geração em geração e compreende três ciclos: infância, adolescência e idade adulta. Um ritual de iniciação marca a passagem de um ciclo a outro. Terminadas as iniciações, o cidadão senufo não é mais submetido às corvéias agrícolas: ele passa à classe dos anciãos, que o chefe consulta antes de tomar uma decisão importante. Cada vilarejo possui um bosque sagrado onde só penetram os iniciados e onde estão conservados os atributos do Lo. Máscaras e esculturas invadem o vilarejo durante as festas da sociedade: iniciações, funerais, término de luto, festas agrárias (Paulme 1968).

1.2) Esboço do elemento ou força vital na filosofia senufo, a partir de Fábio Leite (1982).

O criador (ou pré-existente) dos senufo, apresentado como princípio primordial feminino sob o nome de Klotyeleo, ou Katileo, doou aos seres, no processo da criação, um elemento vital do qual é portador e fonte universal por excelência. Esse elemento permite que a vida exista, porém, a existência material dos seres não é obra do pré-existente, mas de outras divindades que transmitem aos seres a força vital que receberam do criador. Essa divindade é nomeada Niyiligefolo (aquele que me materializou) e tem o poder de recompensar ou punir o indivíduo, de acordo com sua fidelidade ou infidelidade às regras da sociedade e da natureza. Essa punição só existe durante a existência na Terra, de modo que todos os pecados são expurgados nesta existência. Portanto, o pré-existente não se ocupa do bem ou do mal, ou seja, não interfere no destino do homem; esse destino depende da relação do indivíduo com sua divindade pessoal. A guarda dos animais, vegetais e minerais, é confiada a entidades nomeadas Madebele, que estão ligadas às forças da natureza e têm a função de proteger a criação contra toda espécie de mal (Leite 1982: 40-41).

Os senufo, bem como outras sociedades africanas, representam seus mortos através de estatuetas, que funcionam como uma forma de reconstituição do corpo. As representações dos ancestrais mais antigos, ligados ao passado mítico da sociedade, podem ser visualizadas nas esculturas em madeira figurando os caçadores fundadores dos núcleos populacionais provenientes dos processos de sedentarização.

Para os senufo, após a morte, o corpo está destinado a apodrecer, integrando-se à terra (Ibidem: 49-51), enquanto o princípio configurador da vida no corpo, que procede do criador e estabelece a dimensão espiritual do indivíduo, pode constituir um novo homem ou reintegrar-se à massa originária ancestral. Esse princípio vital, chamado Neri, considerado inextinguível, pois ao mesmo tempo divino, manifesta-se sob a forma de duplo - elemento vital ambíguo, do qual depende a vida no corpo, mas também o fim dela. Trata-se de uma energia renovável, que continua existindo depois da morte, sendo apropriado por outra pessoa que faz aumentar sua vitalidade. O duplo é considerado elemento aniquilável em relação ao indivíduo isolado; mas em relação ao cosmos, ele não se perde, já que passa a estabelecer relações com outros indivíduos, de modo a continuar existindo, mesmo quando desvinculado de sua configuração primeira (Ibidem: 53-55).

Um outro elemento vital permite que o homem se integre à sociedade e seja imortal: Pile. Esse componente vital está ligado às qualidades morais e intelectuais do homem, bem como ao seu destino. Trata-se de um elemento também indestrutível: após a morte, ele reencarna-se nos recém-nascidos da mesma família ou se integra na massa ancestral do grupo a que pertence (Ibidem: 74). Existem várias práticas destinadas ao culto e aperfeiçoamento do Pile durante a existência na Terra, como por exemplo, o oferecimento de oferendas rituais ao Pile. Os senufo acreditam que o homem, embora dotado de energia divina, deve se aperfeiçoar, a fim de poder se integrar efetiva e positivamente na sociedade. Para isso é que servem os processos de socialização, com suas etapas de iniciação, a que são submetidos os indivíduos. Um dos objetivos principais de cada etapa é o de fazer "emergir plenamente a personalidade profunda configurada em Pile". O indivíduo, a partir dos processos de iniciação, renasce para uma nova vida, rumo a um aperfeiçoamento espiritual, recebendo um novo nome (Ibidem: 82).

Em alguns vilarejos, como no de Penyakala, existem representações materiais da personalidade, individualizada em certas pedras que simbolizam pessoas vivas ou mortas, cada indivíduo possuindo a sua (Ibidem: 85). Acredita-se que essas pedras contêm uma parcela da personalidade do indivíduo, aquela que não morre e que se liga a seu destino, parecendo mesmo confundir-se com uma divindade pessoal. Essas pedras, dentro da multiplicidade de locais em que os ancestrais podem se manifestar, podem também constituir-se em sedes desses antepassados (Ibidem: 86).

2) Sobre a arte e sua contextualização.

2.1) A estatuária.

Estátuas de grande porte, figuras de ancestrais, eram carregadas pelos recém-iniciados ao longo de uma procissão noturna, em que se implorava à "Grande Mãe" do vilarejo seus benefícios: colheita abundante, filhos numerosos. Esculturas menores eram usadas para adivinhação e rituais de fertilidade (Paulme 1968).

As grandes estátuas antropomórficas são muito pouco conhecidas, pois eram destinadas a um público menor que o das estatuetas mágicas ou de adivinhação; elas residiam em lugares de culto secretos. As estátuas de mais de um metro (masculinas, femininas, geralmente em dupla, raramente em pares), com os braços ao longo do corpo, mãos sobre as coxas, longo pescoço munido de um pendente-talismã, rosto projetado para frente, evidenciam bem as características mais antigas e mais tradicionais da escultura senufo. É provável que essas estátuas provenham do sinzange, lugar de iniciação dos ferreiros. As estátuas remetem à imagem desses ferreiros ou de suas companheiras, as ceramistas; hermafrodita, a estátua exprime a força dupla dos artífices do fogo e da terra, e é abaixo do motivo feminino em torno do umbigo que pende a tanga de couro do ferreiro. Os ferreiros especialistas na escultura em madeira foram submetidos a uma iniciação suplementar, a fim de aprender a polir, colorir, acrescentar pátina (Delange 1967: 33-34).

Há três tipos de estatuetas recorrentes: a mulher carregando uma carga sobre a cabeça, a mulher sentada sobre um tamborete, o cavaleiro. As figuras carregando uma cesta ou recipiente compartilham, com as estatuetas femininas ou hermafroditas Senufo, a postura ereta, os braços pendentes, separados do corpo, mas se encontrando ao nível do ventre ou do alto das coxas. O prognatismo acentuado do rosto, os seios finos, pontudos e projetados para frente, o inchaço triangular do ventre, estão de acordo com a geometria da escultura sudanesa. Essas estatuetas pertencem a uma associação feminina de adivinhação, o sandogo. O motivo radiante que se projeta a partir do umbigo da maior parte dessas estatuetas alude às incisões abdominais das moças senufo; trata-se de um emblema sexual feminino, bem como um símbolo da fecundidade, já que ele aparece em todas as esculturas de maternidade. A cesta e o recipiente também representam a fecundidade, uma vez que sinalizam o sucesso das plantações e a utilização das colheitas (Delange 1967: 30-31).

A estátua sentada sobre um tamborete é chamada "a mulher do trabalhador". Por ocasião da festa do inhame, uma competição é organizada entre os jovens cultivadores do vilarejo e o vencedor é contemplado com a estatueta, que além de ser uma promessa de sucesso, assegurava-o de seu próximo casamento.

As estatuetas de cavaleiros são utilizadas por certos adivinhos para aumentar a eficácia de suas operações. Os cavaleiros e seus atributos religiosos aludem ao poder dos chefes, cuja essência é divina. Mais antigamente ainda, o cavaleiro figurava o personagem masculino intermediário entre Deus e os homens (Ibidem: 32).

A estátua do pássaro Calao, cujo longo bico encontra o ventre, cujas asas se estendem em dois retângulos, remete à mitologia dos senufo: um dos cinco primeiros animais que surgiram sobre a terra, com o camaleão, a tartaruga, a serpente e o crocodilo, esse pássaro foi a primeira criatura morta para ser comida, e por isso transporta as almas dos mortos para o outro mundo. Algumas dessas estatuetas ultrapassam 120 cm e eram carregadas sobre a cabeça pelos noviços durante a cerimônia do Lo, onde invocavam as forças universais vivas (Paulme 1968).

As estatuetas em cobre podem figurar os gênios da mata, guardiões das proibições (Delange 1967: 38).

A importância real da escultura senufo está na capacidade de manter o equilíbrio da sociedade. Hoje, com a pressão de novos cultos sem imagens, a escultura cessa de acompanhar com seu imenso cortejo de formas as atividades dos agricultores senufo: as representações que só tinham sentido no contexto de uma topografia sagrada (clareiras, rochedos) seguem seu novo destino de obras de arte (Delange 1967: 30).

2.2) As máscaras.

A máscara que evoca um ancestral cobre apenas a face; de inspiração naturalista, não quer reproduzir os traços humanos em geral, nem é um retrato (PAULME 1968).

Os dois tipos mais correntes de máscaras senufo são: uma de cabeça bovina, oca para permitir ao carregador de enfiar nela a cabeça, a outra, uma pequena máscara humana plana, que se coloca diante do rosto (Delange 1967: 35).

As máscaras Gpelihe, com rosto estilizado, lembram o rosto das estátuas femininas: mesma evidência das faces, mesmos olhos lineares, mesmas escarificações na testa, mesma projeção do maxilar. Na sua extremidade, o Gpelihe é provido de dois prolongamentos figurando pernas, mas que têm freqüentemente o aspecto de chifres. O cume da máscara é quase sempre encimado por dois chifres anelados, além de figuras humanas ou de animais. Para o Padre Knops, o Gpelihe se nomeia também Kuliu ("devorador de morte"), nome que designa os ferreiros escultores em madeira e alude às supostas atividades canibais desses artistas. Se a nuca do carregador da máscara estiver escondida por uma simples coberta de algodão, trata-se de um Koddalu, máscara de importância menor, encarregada de animar, por meio da dança, qualquer cerimônia. Se a nuca desaparece sob uma fita preta ornada de pompons, presa a um tecido bordado com conchas, trata-se de um Korrigo, máscara utilizada durante a cerimônia de iniciação, que marca o começo da aquisição do saber pelos neófitos. Existem também máscaras Gpelihe em bronze (Delange 1967: 36-37).

3) Imagens e descrição de algumas peças relativas aos senufo no acervo do MAE.

O MAE possui diversas peças tidas como dos Senufo. Entre aquelas esculpidas em madeira tem-se: um bastão "espanta-moscas", um banco, duas polias de tear, um "adorno de cabeça" com quatro estatuetas eqüidistantes, quatro estatuetas, uma escultura figurando um pássaro (Calao) e três máscaras.

Aqui destacamos duas peças, servindo, sobretudo a primeira, de ilustração ao texto acima exposto.

1) Exemplo de máscara Gpelihe ou Kpeliê.


Máscara Senufo Detalhe da máscara senufo
Máscara senufo (No. Tombo 75.4.20)

Máscara encimada por uma estatueta.
Máscara: face emoldurada por dois chifres em arco, que se projetam para fora, a partir de cada maxilar. Acima de cada um desses pares de chifres, ao lado de cada olho, duas asas em forma de trapézio também se projetam para fora da face. Acima de cada asa, um pequeno chifre se eleva em diagonal. Testa projetada para frente, saliente ao plano da face. Nariz fino e comprido, projetando-se para fora do plano da face, ficando paralelo à boca. Esta é formada por um cilindro, texturizado na ponta, sugerindo dentes. Embaixo do tubo que sugere a boca, um cilindro menor se encontra acoplado. O queixo se projeta quadrangularmente, para fora da face. Olhos fechados, com pálpebras esculpidas e sobrancelhas texturizadas. No alto da cabeça, dois arcos representam dois chifres, sobre os quais se assenta uma estatueta de pernas longas, dispostas em 90°, com pés sobre a testa da máscara. Estatueta situada no topo da máscara: mãos sobre as coxas e a cintura. Ventre inflado e pontiagudo, com escarificações em torno do umbigo. Seios pontudos e retos, com três riscos verticais e paralelos, acima dos mamilos. Queixo e maxilar distanciados do pescoço, uma vez que se projetam para fora da cabeça. Impressão de que a figura está em atitude de assopro: bochechas infladas e lábios projetados para fora. Orelhas de abano, furadas, no alto da cabeça e salientes a ela. Chapéu triangular (quando visto de frente) e em forma de lua crescente, quando visto de perfil.
Na parte de trás da máscara, um tecido com incrustações de búzios.

2) Exemplo de estatueta feminina.


Estatueta senufo Detalhe da estatueta senufo
Estatueta senufo (No. Tombo 78/d.1.65)

Queixo prognático, triangular e esticado. Boca protuberante, no limite do queixo, com textura quadriculada formando os lábios. Nariz comprido e fino, largo na base, donde partem duas marcas duplas em arco, em cada face. Olhos fechados, com pálpebras esculpidas e circundados por sobrancelha e cílios. Orelha de abano e saliente, no alto da cabeça, ao lado da vasta testa. Chapéu estreito sobre a cabeça, em forma de lua crescente, quando visto de perfil.

Ombros vastos e arredondados. Antebraços compridos, com braceletes, paralelos ao corpo e descolados dele. Braço muito curto, dobrado, com mãos protegendo o umbigo saliente, de onde saem sulcos radiais. Pernas curtas em relação ao corpo, fundidas a uma base alta e colunar. Seios cilíndricos e caídos desde o pescoço. Perna semiflexionada. Costas trabalhadas com geometrizações. Órgão sexual feminino sugerido por um corte em V.

Referências bibliográficas:

DELANGE, Jacqueline. Arts et peuples de l'Afrique Noire: Introduction à l'analyse des créations plastiques. Paris: Gallimard, 1967.

LEITE, Fábio Rubens da Rocha. A questão ancestral: notas sobre ancestrais e instituições ancestrais em sociedades africanas: Ioruba, Agni e Senufo. Tese de doutorado apresentada no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: 1982.

PAULME, Denise. Senoufo [verbete]. BALANDIER, Georges e MAQUET, Jacques. Dictionnaire des civilisations africaines. Paris: Hazan, 1968, p. 387-389.


 

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