Sociedades tradicionais da África representadas no acervo do MAE: Baulê


Verbete elaborado por José Tiago Risi Leme, estagiário do MAE, 2000-2003,
editado do texto não publicado intitulado "Aspectos sócio-culturais da arte
e cultura das sociedades baulê, senufo, bambara e dogon", de 2003.

1) Dados geográficos e sócio-culturais.

Os baulê ocupam a zona de savana, na parte central da Costa do Marfim. Revelam várias origens, entre as quais ashanti. O reino formado a partir das imigrações ashanti (século XVIII), em que uma aristocracia estava constituída, sobreviveu até a invasão dos franceses, mas os antigos regimes sociais das populações submissas persistiram. Assim, conservou-se parte do domínio público e religioso dos ashanti (Mercier 1968). Os baulê, bem como os ashanti, fazem parte de um grupo lingüístico maior, os akan, que constituem 45% da população de Gana e 33% da população da Costa do Marfim.

Já em 1300, na região Begho, os akan (fração bron - Costa do Marfim) estavam bem estruturados para o comércio de ouro e nozes-de-cola com os manding (Kipré 1985). No antigo país baulê, o ouro era considerado metal divino e não chegou a ser explorado exaustivamente. Empregavam-no na confecção de objetos reais ou cultuais, como também moedas de câmbio e objetos de presente (Hampaté-Bâ 1985).

Sabe-se que a escultura em madeira é mais destacada entre os Baulê, enquanto a arte em metal é uma característica mais forte dos ashanti, de quem os baulê se separaram por volta de 1750, migrando para a Costa do Marfim. De fato, muitas peças dos baulê, como as máscaras de madeira, têm traços, independentemente do material, extremamente semelhantes com as cabeças de ouro dos ashanti. Isso pode dever-se a um ideário comum, a uma mesma experiência histórica, a vivências ambientais semelhantes ou, mesmo, às vezes, à vizinhança em contigüidade geográfica. E assim como para os ashanti, veremos que a preocupação com a beleza física espelhada na arte é também importante para os baulê. Para estes, o mundo físico, experimentado por meio dos sentidos, é espelhado por um mundo paralelo, invisível, que é imaginado como um lugar de perfeição, habitado por espíritos humanos, os espíritos dos ancestrais a que se associa sua estatuária (Ravenhill 1993: 2).

2) Sobre a arte e sua contextualização.

2.1) A arte em geral

O tratamento da madeira e do metal é extremamente refinado: esse foco de uma grande arte de síntese exerceu sua influência sobre todas as populações vizinhas. Trata-se, como em toda a África, de uma arte religiosa e também real. No entanto, a freqüência das decorações esculpidas em objetos usuais como colheres, pentes, ornamentos de cabelo, polias de tear, tamboretes, evoca trabalhos executados simplesmente para a satisfação estética.

Os pesos para pesar pó de ouro são muito semelhantes aos dos ashanti. O ouro é empregado da mesma maneira: jóias, grandes máscaras recobertas com folhas de ouro, pequenas máscaras fundidas por meio da técnica da cera perdida.

A diversidade da escultura em madeira se mostra na elaboração de portas esculpidas, com figurações humanas ou de animais em baixo-relevo, o que evoca a história de uma família, ou a história real. As máscaras são às vezes abstratas, representando animais (boi, por exemplo) ou rostos humanos (testa convexa, sobrancelhas em arco, olhos semi-abertos, nariz fino sem grande relevo, boca que é uma fenda ou saliência retangular). As máscaras humanas podem ser encimadas por pequenas figuras de animais.

As estatuetas, cuja maioria representa os ancestrais e coroa altares, são delicadamente elaboradas: o rosto, as mãos, os pés, as escarificações são tratados detalhadamente; a cabeleira recebe uma atenção particular; os braços são geralmente colados ao corpo, e as pernas, levemente separadas; alguns personagens estão sentados sobre um assento (Mercier 1968).

2.2 As estatuetas baulê

Para compreendermos a arte baulê, especialmente no que se refere às estatuetas, utilizamos Ravenhill (1993 e 2000), que fala sobre as estatuetas de companheiros espirituais no outro mundo, e Steiner (1994), sobre as estatuetas coloniais. Ravenhill se preocupa em abordar o contexto de uso das estatuetas, demonstrando que o significado das características morfológicas está vinculado à função da estatueta, qual seja, causar uma sensação de interação (face-a-face) naquele que olha para a figura. A abordagem da arte, por Ravenhill, é feita de modo a se levar em conta a filosofia baulê, dentro da qual a arte se insere: o uso das estatuetas de companheiros espirituais do outro mundo é sustentado por uma visão cosmológica do mundo, a partir da qual se acredita que todo indivíduo tem um companheiro no outro mundo; esse companheiro pode estar na raiz de muitos problemas ocultos. Steiner dá um enfoque histórico para as estatuetas coloniais, de modo a demonstrar que essas estatuetas, inicialmente concebidas para o uso étnico, passaram a ser vendidas como souvenires nos mercados de arte. Ele também aborda a função sócio-cultural desses objetos, apropriando-se de Ravenhill.

2.2.1) As estatuetas de companheiros do Outro Mundo

Com essa denominação, Ravenhill (1993, 2000) trata um tipo de estatueta dos Baulê. Segundo o autor, os baulê acreditam que cada homem e cada mulher têm, respectivamente, um companheiro espiritual mulher e homem, que é representado por uma figura esculpida, a qual é mantida no quarto, protegida da sujeira; aos seus pés são colocadas pequenas oferendas de dinheiro e comida. Para uma crise no casamento, comportamento dos filhos, ou para o bem-estar da família, o adivinho pode descobrir que o companheiro espiritual está na raiz do problema, recomendando freqüentemente que o espírito seja representado por uma figura esculpida em madeira: ele ou ela é materializado em miniatura (Ravenhill 1993: 2). Essa figura é conceitualizada na linguagem baulê como uma "pessoa de madeira", waka sran (Ravenhill 2000: 60-61). Esse termo abrange, além das imagens de companheiros do Outro Mundo - chamados blolo bla e blolo bia (homem e mulher do Outro Mundo) -, as imagens dos espíritos da floresta - chamados asie usu. Uma figura blolo é um intermediário entre o espírito companheiro de uma pessoa (ou o correspondente espiritual de uma pessoa) e a pessoa, sendo o espírito dirigido por seu par humano (Ravenhill 2000: 62).

A figura esculpida se torna um blolo quando é consagrada e colocada em um altar, no quarto do seu proprietário. Nesse ato, a figura é envolvida com um tecido em torno da região genital e pode ser adornada com colares e pulseiras. A figura torna-se então um intermediário entre o proprietário dela e o seu companheiro do Outro Mundo: o proprietário se dirige a ela pela palavra. Por isso, a cabeça da figura blolo é oticamente equivalente à face de uma pessoa real, situada a mais ou menos dois metros de distância do seu interlocutor (Ibidem: 62-63).

A ênfase que se dá à proporção da cabeça nessas figuras é devida à intenção de dar ao proprietário da estatueta a sensação de estar olhando para um outro ser humano, num contexto de interação pessoal e diálogo. A figura é esculpida com a intenção de criar a sensação de face-a-face com outra pessoa. A cabeça da figura preenche o campo de visão daquele que olha para ela, enquanto o corpo e as extremidades recuam do foco principal, que está na cabeça. Essa ênfase ótica dada à cabeça é também encontrada na testa e maxilar: a testa é enfaticamente acentuada, ao passo que queixo e maxilar são atenuados. Quando vista de frente, a testa é formada pela linha da cabeleira e pelas curvas das sobrancelhas (Ibidem: 63).

O autor faz um paralelo dessas figuras do Baulê com as dos bakongo da África central, citando Wyatt MacGaffrey (Ravenhill 2000: 64). MacGaffey menciona que as figuras Minkisi dos bakongo tinham intenção de criar um efeito visual no contexto de uso ritualístico, realçado por canções, danças e tambores; a forma era designada a imprimir naquele que olha para a figura, a "presença de algo extraordinário" e criar uma reação de espanto. No caso das figuras baulê, o mesmo espanto e sentimento de extraordinário também são causados, porém, não pelos aparatos assustadores da figura, mas pela idealização de beleza a partir da qual elas são talhadas.

Como já se disse, a figura é considerada uma idealização de beleza humana: o nariz acentua a cabeça, que na arte figurativa dos baulê é de fundamental importância para a criação da percepção humana. Os olhos são representados como se a figura estivesse olhando para baixo, talvez a fim de se criar uma impressão de privacidade. O efeito geral causado pela estética facial é de compostura, dignidade e serenidade. A escarificação do corpo é um sinal de beleza e representa o intencional progresso sobre a natureza, por uma modificação definida da superfície do corpo. O torso mostra o potencial do corpo humano: figuras masculinas têm os músculos do peitoral bem formados; seios grandes nas figuras femininas simbolizam a fertilidade (Ravenhill 1993: 5).

2.2.2) As estatuetas colon ou coloniais

A estatuária em madeira dos baulê é também muito célebre pelas estatuetas em madeira de figuras colon, que representam europeus ou africanos com trajes ocidentais. Essa denominação é usada por Steiner (1994). Carregando elementos do enredo europeu (armas, roupas, postura, etc), essas estatuetas não eram originalmente concebidas para o comércio, mas para uso etnológico. Entre os baulê, de acordo com pesquisas conduzidas por Philip Ravenhill, estatuetas com trajes elegantes eram usadas da mesma maneira que outras estatuetas em madeira, ou seja, para representar um namorado (companheiro) espiritual no Outro Mundo. Uma estatueta baulê usando roupas modernas não é a réplica de um europeu, nem a expressão do desejo por um companheiro europeu no Outro Mundo, mas a expressão do desejo de que o companheiro do Outro Mundo apresente aqueles sinais de sucesso e status que caracterizam um mundo dominado e orientado pelo homem branco.

Durante o período colonial, essas estatuetas modernas policromadas não eram vendidas em mercados de arte africana. No fim dos anos de 1950, entretanto, perto do fim da exploração colonial francesa na Costa do Marfim, os soldados, administradores e funcionários coloniais começaram a encomendar retratos esculpidos deles - como souvenires para levarem de volta para casa. Isso deu origem a um novo tipo de arte, para turistas, que se desenvolveu fora de uma tradição etnológica de representar africanos em atitudes e trajes ocidentais. Os comerciantes desse tipo de arte descobriram que os objetos pintados clara e lustrosamente não são vendidos tão bem quanto os objetos desbotados, que parecem mais velhos, uma vez que os compradores gostam de acreditar que as estatuetas eram feitas durante o período colonial e que a pintura se desgastou naturalmente, através do tempo. Assim, quando um comerciante compra uma figura colon de um atelier, ele remove uma camada de tinta com lixa, o objeto é então tingido com permanganato de potássio. Esse tratamento do objeto produz uma superfície escurecida, com pintura lascada, permitindo que o objeto seja comercializado como antigo.

Em seu novo contexto, a estatueta colonial é vista como uma celebração do expansionismo ocidental, ao invés de ser vista como representativa da apropriação do elemento ocidental pelo homem africano (Steiner 1994: 148-149).

3) Imagens e descrição de algumas peças relativas aos baulê no acervo do MAE.

O MAE possui diversas peças tidas como dos Baulê. Entre aquelas esculpidas em madeira tem-se: um bastão, uma colher e uma concha, um espanta-mosca, duas polias de tear, três estilingues, seis pentes, nove estatuetas e três máscaras, dentre as quais uma em miniatura.

Aqui destacamos duas peças que podem servir de ilustração ao texto acima exposto.

1) Exemplo de companheiro do Outro-Mundo conforme referido por Ravenhill (1993 e 2000).

Estatueta baulê Detalhe da estatueta baulê
Estatueta baulê (No. Tombo 77/d.1.67)

Estatueta masculina. Cabeça grande e desproporcional ao corpo, e testa de formas arredondadas. Cabeleira penteada para trás e dividida em cinco partes, sendo a central mais vasta e triangular. Orelha bem marcada, com textura quadriculada ao lado de cada uma. Limites da testa marcados pelas sobrancelhas, que ocupam toda a largura da face. Pálpebras marcadas, dando impressão de os olhos, em forma de folha, estarem fechados. Nariz esculpido, comprido e pontiagudo. Boca fechada, com contorno de lábios bem marcado. Barba texturizada com traços verticais e paralelos, abrangendo todo o queixo. Pescoço comprido e espesso. Ombros largos. Antebraços colados (paralelos) ao corpo: braço direito levemente flexionado, com mão apoiada sobre o umbigo; braço esquerdo dobrado em ângulo agudo, com mão sobre o coração. Calção policromado, listrado e esculpido. Pernas flexionadas, joelhos distanciados um do outro. Pés entortados para dentro, fundidos a uma base circular.

2) Exemplo de estatueta colon ou colonial conforme referida por Steiner 1994.

Estatueta baulê Estatueta baulê
Estatueta baulê (No. Tombo 77/d.1.68)

Figura masculina, provavelmente um garoto, trajado com roupas ocidentais: calça acima do joelho (short), camiseta, cinto e sapato de bico fino. Policromia vermelha nas pernas, braços, mãos, pescoço e rosto; roupas pintadas de verde escuro; cabelo, sobrancelhas, contorno dos olhos, pupilas e sapato, de preto; olhos, de branco. Uma abertura na boca, em que não há policromia, talvez representando os dentes, denuncia que a peça foi esculpida em madeira clara, bem como o solado dos sapatos, que também não foram pintados. Cabeleira texturizada, dando impressão de cabelo crespo e encaracolado. Olhos finos, sobrancelhas grossas, nariz comprido, lábios estreitos, orelha em forma de "C" e pescoço comprido, anelado. Sinais de corrosão de inseto na parte lateral do tronco e no ventre, marcas de desgaste da tinta.

Referências bibliográficas:

HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. História Geral da África: Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1985.

KIPRÉ, Pierre. Das lagunas da Costa do Marfim até o Volta. História Geral da África: A África do século XII ao século XVI. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1985.

MERCIER, Paul. Baoulé [verbete]. BALANDIER, Georges; MAQUET, Jacques. Dictionnaire des civilisations africaines. Paris: Hazan, 1968, p. 65-66.

RAVENHILL, Philip L. Dreaming the Other World: Figurative Art of the Baule, Côte d'Ivoire. [folheto de exposição]. Washington: National Museum of African Art / Smithsonian Institution, 1993.

RAVENHILL, Philip L. Likeness and nearness, the intentionality of the head in Baule Art. African Arts 33 (2), p. 60-71, 2000.

STEINER, Christopher B. African Art in Transit. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.


 

copyright 2004/2005 © MAE/USP