Sociedades tradicionais da África representadas no acervo do MAE: Bambara

Do "Dicionário de civilizações africanas", organizado por Georges Balandier e Jacques Maquet, tem-se que:

"Os bambara ou bamana pertencem ao grupo mandê, que formam a base da população da atual República do Mali. É também, entre as sociedades do grupo mandê, a que mais resistiu ao Islão: bambara, "os infiéis", assim os nomeiam ainda seus vizinhos muçulmanos. Seu habitat vai do curso superior do Senegal ao do Níger; do norte ao sul, vai do Sahel à Costa do Marfim. (...) "Os Bambara aparecem na história no século XVII. (...) "Os bambara passaram por momentos políticos diversos até que em 1854 o conquistador truculento El Hadj Omar tenta impor-lhes o Islão. Eles resistem, mas tarde demais: somente a intervenção de tropas francesas d'Archinard livrarão Segu e seus habitantes bambara do jugo d'Ahmadou, filho de El Hadj Omar. (...)

E, aqui, chegamos ao período da partilha e dominação colonial da África. Balandier & Maquet prosseguem observando:

(...) "Homens da enxada e do milho, agricultores mais do que guerreiros, os bambara conservam estruturas tradicionais vivas. A verdadeira célula social é aqui a grande família indivisível, agrupando um conjunto de misturas das quais os chefes reconhecem um ancestral comum. Todos os chefes de família obedecem a um chefe de aldeia, a quem se atribui o cuidado de fazer a justiça e de dar as ordens no que concerne as festas religiosas e as iniciações: descendente e representante do fundador da aldeia, esse chefe é o único que pode renovar o gesto de seu antepassado e entrar em contato com os gênios do solo, assegurar seu culto e a exploração das terras.(...)"

Em torno dessa tradição e modo de vida que giram muitos dos temas plásticos dos Bambara.

Suas associações iniciáticas transmitem ensinamentos sobre a cosmogonia e a mitologia que impregnam tanto a religiosidade quanto as regras sociais e que, por etapas, promovem a construção do indivíduo na sociedade. Iniciação e práticas de culto permanecem secretas para mulheres e crianças dos Bambara, mas os ritos dão lugar a festas públicas, com auxílio de máscaras e estátuas.

Entre essas associações está a tyiwara, cujo ensinamento centra-se nas atividades agrárias. A ela estão ligados os "antílopes", as mais conhecidas esculturas dos Bambara.

Essa associação está representada no acervo do MAE por três das quatro únicas peças esculpidas em madeira dos Bambara. Duas têm configuração vertical e são muito estilizadas (No. Tombo 77/d.1.11) e a terceira, horizontal (No. Tombo 78/d.1.20), apresentando um certo naturalismo.

Máscara Ttyiwara
detatlhe da máscara Ttyiwara
Máscara Ttyiwara
Topo de máscara Ttywara (No. Tombo 77/d.1.11) Topo de máscara Ttywara (No. Tombo 78/d.1.20)

Essas esculturas são peças usadas como topos de máscaras, sendo por isso também chamadas de "adorno de cabeça". São duas máscaras que se apresentam em par e simbolizam o sol e a terra, por intermédio de dois antílopes: um macho e, o outro, fêmea. Há referências de que se trata de um animal híbrido, podendo ser um antílope-pássaro ou serpente, fazendo-se referência ao ar e solo.

Esses topos de máscara em forma de antílope recebem o nome da associação: tyiwara, sendo que tyi significa "trabalho" e wara, "animal". Repousam sobre uma base retangular furada, permitindo fixá-las a uma calota trançada a qual se fixa uma vestimenta de fibras compridas. Colocado sobre a cabeça dos mascarados, o conjunto esconde seu corpo. Na dança, eles gesticulam o trabalho da terra segurando duas estacas nas mãos e imitando os saltos dos antílopes.

Essa máscara era trajada por membros da associação correspondente durante as festividades agrícolas, antes da estação chuvosa, a fim de promover a fertilidade do solo. Tem-se também que apareciam na semeadura e colheita.

Há uma grande variedade dessas "máscaras-esculturas". Além de umas serem mais estilizadas e outras mais naturalistas, há as que têm o chifre posicionado na vertical, outros na horizontal. De acordo com Jacqueline Delange, em "Artes e povos da África negra", isso pode determinar a sexualidade inferida pela escultura, mas também é certo que o grau de estilização e naturalismo está relacionado à região dos Bambara onde se produz e utiliza a máscara a que a escultura se destina.

Sobre as estátuas propriamente ditas dos Bambara, temos muito poucas informações precisas, embora sejam muito difundidas as de sexo feminino. Sua principal característica formal é a formulação de seios altos, cônicos e pontudos. Sobre a estatuária dos grupos mande, de que os Bambara fazem parte, Jacqueline Delange, acima citada, ressalta que os seios, sempre fartos, indicam a importância do elemento feminino, e a cabeleira trançada em forma de cúpula, típica dessa estatuária, sugere a maternidade: a multiplicidade de cristas seria a representação do número de filhos.

Essa descrição encontra correspondência na quarta peça em madeira atribuída aos Bambara no acervo do MAE: uma estátua feminina janiforme (No. Tombo 77/d.1.2).

escultura bambara detalhe da escultura bambara
Estatueta bambara (No. Tombo 77/d.1.2)

O fato dela ser composta por duas metades, uma de costas para outra, só acentua a idéia de uma totalidade formada por partes complementares, e inter-relacionada. Assim, estátuas dos Bambara como essa, sugerem a associação entre o feminino e a progenitude, e, por isso mesmo, entre a mulher e o homem. Sugere também a complementação de opostos resultando na totalidade.
Observe-se que essa peça possui, como um desses topos de máscaras citados, aplicação em metal (provavelmente latão) e pano vermelho, provavelmente de origem européia. Muito provavelmente foi feita para o comércio, ainda que regida por modelos locais, sendo esses elementos decorativos um sinal de sua origem estilístico-cultural.

Referências bibliográficas:

BALANDIER, Georges e MAQUET, Jacques. Dictionnaire des civilisations africaines. Paris: Hazan, 1968.

DELANGE, Jacqueline. Arts et peuples de l'Afrique Noire/ Introduction à l'analyse des créations plastiques. Paris: Gallimard, 1967.

HAMPATÉ BÂ, Amadou A tradição viva. História Geral da África: Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1985.

LEME, Tiago José Risi. Aspectos sócio-culturais da arte e cultura das sociedades baulê, senufo, bambara e dogon. Texto não publicado, 2003.

SALUM, M.H.L. Notas discursivas sobre as máscaras africanas. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 6. p. 233-253, 1996.

ZAHAN, Dominique. Signification et fonction de l'art dans la vie d'une communauté africaine: Bambara. Colloque sur l'art nègre: Festival mondial des arts nègres. Dakar, 1966: pp. 33-45.


 

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