NOTAS DISCURSIVAS DIANTE DAS MÁSCARAS AFRICANAS

Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy)

Artigo publicado na Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 6, p. 233-253, 1996. Apesar de ter sido elaborado entre 1982 e a data em que foi publicado, período já distante, tem sido útil ainda hoje para discussão junto a alunos e estagiários do MAE-USP. Esperamos que ele seja interessante também aos leitores deste site.

Resumo: Procuramos aqui discutir algumas idéias e conceitos correntes na abordagem de máscaras africanas em catálogos e exposições. Fora de seu contexto de origem, e integradas no universo das coleções, o que significam "máscaras-antílope", "máscaras representando um ser mítico"? Como poderíamos, em poucas palavras, explicar o que é "máscara ancestral"? Refletindo sobre isso numa perspectiva estético-antropológica, e na de quem as vê pela primeira vez, apresentamos vinte máscaras de madeira provenientes da África do acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, inéditas em sua grande maioria.

Unitermos: Arte africana: estilística - Arte africana: tipologia - Antropologia - Escultura - Estética - Etnografia africana - História da arte - Máscaras: etnografia - Museus: coleções africanas.

Fora de seu contexto de origem, e integradas no universo das coleções, o que nos transmitem as máscaras africanas? O que significam "máscaras-antílope", "máscaras representando um ser mítico"? Como poderíamos, em poucas palavras, explicar o que é "máscara ancestral"? Nossas considerações são feitas sob duas óticas: a de quem observa e a de quem pesquisa; esta, se fragilizada pela falta da observação empírica, é fortalecida pela presença do imaginário, uma tentando amparar a outra, corrigindo distorções provocadas pela unilateralidade - seja ela mais à estética, ou mais à antropologia.

No MAE estão inventoriadas cerca de cinquenta máscaras africanas em madeira. Provêm de sociedades repartidas pelas divisas coloniais, que hoje se encontram em nove países da África ocidental (cf. mais sobre a Coleção e sua procedência em Salum & Cerávolo 1993). Selecionamos vinte delas para serem aqui apresentadas. Ainda que sem pretender dar conta da sua curadoria, peça por peça, nem do potencial científico dessa coleção, esperamos contribuir para a valorização cultural, histórica e artística desse patrimônio com que os povos africanos nos honram, e alimentar razão para que essas máscaras permaneçam entre nós.

Forma-função e tempo-espaço Conforme diz Paulme (1956: 114), "na ausência de uma datação exata, podemos ao menos distinguir duas épocas na escultura africana: antes e depois da colonização". Ocorre que nesse período, segunda metade do século XIX à segunda metade do XX, que chamamos de situação colonial (Balandier 1971), mesmo que nele tenham surgido formas novas, muitas produções tradicionais ou "pré-coloniais" permaneceram, ou foram feitas nos padrões tradicionais. Entre estas temos peças "muito antigas", "antigas" (talvez entre 60 a 80 anos) e "recentes" (35 a 50 anos); as recentes que contêm inovações de material e estilo poderiam ser chamadas de contemporâneas. A maioria das peças africanas da coleção do MAE são tradicionais. O problema da cronologia leva ao da funcionalidade: não basta ter sinais de uso para que a consideremos "tradicionais", nem "autênticas" (cf. a esse propósito Cornet 1975).

Aqui, propomo-nos a refletir, independente de serem antigas, "modernas", recentes, "contemporâneas", sobre qual é o tipo de olhar que resta às máscaras da África tal qual se apresentam nos museus, e qual o seu testemunho.

Iniciemos pela forma. Como encarar uma máscara como a representada na Fig. 1 - pela face, que, aliás, é o topo da máscara?

FIGURA 1
Fig. 1 - Máscara Gueledê. Grupo étnico: Nagô. País: Rep.Pop. do Benin. Recente. Provavelmente, um dos estilos contemporâneos. Comprimento: 39cm. Diâmetro da base: 27,5cm. Policromada (têmpera?) em branco, azuis, alaranjado. Coleção MAE-USP Inv. 77/d.4.347. Foto (vista de topo) e desenho (vista conforme uso): Lisy Salum.

Trata-se de uma peça registrada como "Máscara de Oxumaré, Geledé, '(...)" (conforme listas de inventário). Vemos no "crânio" da máscara uma cobra enrolada (ou plissada), que avança (ou evolui) estirando (ou pendendo) a cabeça paralelamente ao seu "rosto". Esse exemplar foi confeccionado, ao que parece, sob encomenda para fins didáticos (como é o caso das peças representando o processo de escultura desse tipo de máscara em exposição no MAE), havendo uma peça praticamente idêntica no Museu Afro-Brasileiro do Centro de Estudos Afro-Orientais-CEAO da Universidade Federal da Bahia (a formação desses dois acervos tem fortes relações históricas). As máscaras "gueledê", da associação feminina de mesmo nome dos Yorubá (Nigéria) ou Nagô (República Popular do Benin) não são faciais, nem propriamente "elmos", ou "máscaras-capacete": a maioria delas são, normalmente, feitas para serem colocadas no topo da cabeça, num plano quase horizontal, apenas cobrindo a testa (mais como um boné do que como um capacete propriamente dito). Confira um importante estudo dessas máscaras, cultivadas no Brasil e observadas nas primeiras décadas do século na Bahia, por Carneiro da Cunha (1983: 1014-1017). Cf. também Lawal (1983: 50-2), que as vê como "tentativa iorubá de lidar com os problemas de feitiçaria e controle social, usando a Arte como uma arma".

Há no MAE outros objetos pertencentes à categoria de máscaras que poderiam ser encarados com mais propriedade, pelo menos do ponto de vista formal, como "elmos". É o caso do "adorno de cabeça em forma de capacete com quatro figuras esculpidas" (conforme listas de inventário) dos Senufo (Costa do Marfim). As figuras não são do mesmo tamanho, nem iguais, e ainda que comportem grandes mamas, são assexuadas. Vem aqui representado na Fig. 2. Qual seria sua verdadeira face?

FIGURA 2
Fig. 2 - Topo de máscara. Grupo étnico: Senufo. País: Costa do Marfim. "velha e usada" (conforme listas de inventário). Altura: 34,5cm. Diâmetro: 21,5cm. Madeira escurecida (provavelmente patinada). Coleção: MAE-USP Inv. 78/d.1.6. Desenho e fotos (detalhes das quatro figuras): Lisy Salum.

Será que os africanos pensaram em fazer de suas máscaras - destas em forma de capacete - "armaduras para cabeça" (sentido original de elmo)? - Não nos parece exato pensar que, apenas pela forma, máscaras africanas do tipo elmo sejam "de proteção"; doutra parte, podemos verificar que máscaras bi- ou multi-faciais, do mesmo modo como algumas estatuetas da África tradicional, podem evocar algo relacionado se não à proteção, à defesa. A forma pode denunciar esse fenômeno, mas ele só pode ser argumentado diante de outros fatores concorrentes, como mitos e ritos relacionados à prática escultural, ou o uso e a função. Afinal, o que pode existir de ameaçador - ou de apaziguador -, ou de qualquer outro juízo de valor em simples objetos-máscaras, se não aquilo que nós projetamos neles? Desse modo, sendo a máscara capaz, como todo objeto de arte, de dizer o "indizível", podemos, por fim, nos questionar: a máscara revela ou mascara? O princípio dual na concepção da máscara representada na Fig. 3 significa pluralidade ou ambiguidade?

FIGURA 3
Fig. 3 - Máscara Gueledê. Grupo étnico: Nagô. País: Rep.Pop. do Benin. Tricéfala. Provavelmente miniatura (para crianças? emblemática?). Comprimento: aprox. 25cm. Coleção MAE-USP Inv. 77/d.3.59. Desenho: Lisy Salum. Foto: MAE-USP (Vista lateral 3/4 direita conforme uso).

Extrapolando a interpretação funcional da máscara vulgarizada entre nós (algo que dissimula, oculta), parece restar-nos a abordagem estética (algo mimético, que transpõe). Mas esta, distante do paradigma tradição-modernidade, se curva diante da omissão: as fontes da maioria das máscaras em coleção já estão praticamente perdidas de forma irremediável. No universo tradicional africano, as máscaras não se constituíam apenas do "rosto" ou da "cabeça" esculpida. Na verdade, para as populações de onde se origina, a máscara é o "mascarado", a "dança". O que chamamos máscara africana é apenas uma parte dela, aquilo que, nas coleções e museus, conseguiu-se preservar de um "conjunto multi-mídia" da máscara. Cabe aqui tomar por empréstimo a reflexão de Grimaldi (1983: 6): "o que a arte visa produzindo um objeto, não é o que ela visa assim [através dele] produzir. Mas é esse objeto que contemplamos (...)".

No entanto, a parte da máscara africana que recobre o rosto, ou o topo do crânio, era bem diferenciada. A ela eram atribuídos nomes especiais, e algumas sociedades, como os Guro (Costa do Marfim), chamavam-na pelo nome da dança em que era utilizada, ou, tendo como referência a matéria de que era feita, por yri, "madeira" (Kacou 1978: 77). O significado da madeira na escultura tradicional africana (cf. Salum 1996) reforça o direcionamento da apreciação das máscaras com vistas às relações natureza-meio ambiente-cultura.

A preocupação com esses níveis de alteridade, às vezes de forma distorcida, parece já cristalizada, tendo uma relação direta com parâmetros morfológico-estilísticos de interpretação estética. Apesar da configuração plástica de uma máscara africana ser eventualmente abstrata, ela não é necessariamente simbólica. Ela pode ser realista mesmo comportando distorções. Isso pode ser atestado no artigo de Wingert (1971), em que analisa o conhecimento de anatomia humana do escultor como fator de expressividade da máscara antropomórfica. Um exemplo clássico é o de máscaras dos Bayaka e dos Bapende do Zaire (cf. Petridis 1992); na coleção do MAE, máscaras dos Wobe-Guerê, Kran, Niabwa (povos contíguos da Costa do Marfim e Libéria), ilustram o problema. A máscara da Fig. 4 é "responsável pela manutenção da ordem social" (conforme listas de inventário), pertencente provavelmente a uma associação político-jurídica tradicional dos Niabwa, que possivelmente se estenda aos seus vizinhos.

FIGURA 4
Fig. 4 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Niabwa. País: Costa do Marfim. "antiga e muito usada" (conforme listas de inventário). Altura: 31 cm. Madeira policromada, pele animal, fibras. MAEUSP Inv. 78/d/1/9. Desenho: Lisy Salum. Foto: MAE-USP (perfil 3/4 esquerdo).

Esse abstracionismo geométrico que vemos com certa frequência nas máscaras antropomórficas da África tradicional, e nessas em particular, impressiona-nos de maneira diferente do que aquelas de animais, já que, como diz Leuzinger (1962: 103) a respeito dos traços da arte dos Yaurê (Costa do Marfim), elementos zoomorfos - chifres, pássaros - indicam "seres mitológicos". Mas a geometrização, acrescida dos materiais superpostos - como se vê na máscara da Fig. 4 -, pode inspirar-nos também esse paradoxo natureza-cultura. Referindo-se a uma máscara We similar a ela, Verger-Fevre (1982: 59) diz de "uma fisionomia tão afastada do humano que ela evocaria talvez algum animal fantástico."

No entanto, na escultura tradicional africana parece haver algo de relevante no abstracionismo das máscaras, mais notado nelas do que nas estátuas e estatuetas, talvez porque estas, sendo de caráter propiciatório ou comemorativo, apresentam uma concepção realista da figura humana, representando um ser humano, ou humanizado.

O talhe da ferramenta, os veios da madeira, os traços de pintura são recursos gráficos da escultura que parecem procurar sua visibilidade na máscara, se lhes fosse possível escolher entre essa e uma estátua; mesmo não sendo exclusivos dela, nela têm seu suporte preferencial. Esses recursos acentuam por vezes as "feições" da máscara, transformando-as, aludindo a seres pertencentes a um outro espaço, que não seria exatamente o "religioso", mas diverso do espaço cotidiano, da vivência sócio-ambiental concreta. Um é o espaço-concebido, o outro, o espaço-vivido - que Roumeguere- Eberrhardt (1963) sintetiza tão bem em populações bantu.

Esse exercício pode ser transposto, bem ou mal, à experiência estético-artística universal, à nossa própria experiência ao examinar as máscaras africanas. Na Fig. 5, vemos uma fotografia lateral de uma máscara dos Igbo (Nigéria), que parece ser do tipo Agbogho Mmwo ("máscara do primeiro espírito" ou "do espírito, ou ser, primordial" do inglês Maiden Spirit) vestida em funerais por membros da associação iniciática masculina, representando atividades femininas (cf. Willet 1995: 94-5). São máscaras cujas faces recebem uma pintura branca chapada, sobre a qual são, como que impressos, outros traços fisionômicos lineares em preto, alterando - ou reforçando? - os moldados pelo talhe. Dos planos e volume ao tratamento linear da superfície pode-se abstrair - é só querer - várias expressões, ou "feições" da máscara, ao gosto do espectador, conforme sugerem os desenhos que se seguem à foto.

FIGURA 5
Fig. 5 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Ibô. País: Nigéria. Altura: aprox. 35cm. Madeira policromada, base de pintura branca com traços pretos e vermelhos. Motivos decorativos esculpidos. MAE-USP Inv. 77/d.3.39. Desenhos: Lisy Salum (vista frontal e um dos esquemas gráficos possíveis da pintura facial sobre a máscara). Foto: MAE-USP (vista de perfil).

A mística do mito
Podemos ter em mente que os "seres" figurados nas máscaras eram tidos como do mesmo "espaço" dos heróis civilizadores, das divindades, dos antepassados e dignitários célébres da estatuária da África tradicional, com a diferença de que estes eram situados, normalmente, dentro de uma cronologia precisa. Conformando a idéia do ser primordial ou o fundador do grupo, a estatuária cultual tinha um valor representativo dentro de uma idéia de espaço-tempo localizador. De outro teor, a "experiência estética" que as máscaras africanas teriam possibilitado ao indivíduo que a vestia aproximava-os de uma "zona confinando o sobrenatural" (Leiris & Delange apud Grimaldi 1983: 15-16).

Mas não se pode marginalizar a atenção dada ao fato de que as máscaras, e mais especificamente as "associações de máscaras", eram, na África pré-colonial, e mesmo no período colonial, atuantes em todas as áreas da vida social. Da inspiração ao uso, as máscaras jogavam com a noção de temporalidade, compatível não apenas com o seu aparecimento ritual, mas também compromissadas com a de tempo-espaço, estabelecendo vínculo histórico entre passado-presente-futuro. Isso significa que partilhavam do tempo histórico, ainda que os seres nela figurados fossem atemporais, já que nem sempre eram reconhecidos na genealogia específica do espaço histórico. Equivale dizer que seriam seres de um "tempo mítico".

É isso que pode explicar porque duas peças provenientes da Costa do Marfim conservadas no MAE foram cadastradas como "máscara representando um ser mítico". Mas, na falta de informações complementares de contexto, temos diante de nós apenas as máscaras em si mesmas.

A primeira máscara, dos Baulê (Fig. 6), antropomórfica, de fino talhe e ricamente adereçada com cauris, cujo valor de adorno e prestígio social é bem conhecido, em particular nos povos da África sudanesa.

FIGURA 6
Fig. 6 - Máscara antropormórfica. Grupo étnico: Baulê. País: Costa do Marfim. "muito usada" (conforme listas de inventário). Altura: 32cm. Madeira esculpida, cauris. MAE-USP Inv. 78/d.1.13. Desenho: Lisy Salum. Foto: MAE-USP (vista de perfil).

Mas a segunda, dos Senufo (Fig. 7), é zoomórfica - e com chifres -, de feições rudes.

FIGURA 7
Fig. 7 - Máscara zoomórfica. Grupo étnico: Senufo. País: Costa do Marfim. "antiga" (conforme listas de inventário). Altura: 27cm. Madeira esculpida, pêlo animal. MAE-USP Inv. 78/d.1.19. Desenho: Lisy Salum (vista frontal 3/4 direito). Foto: MAE-USP (vista de perfil 3/4 direito).

Que seja ou não cultural, a sensação provocada pelo contraste entre o hieratismo de uma sobre o expressionismo da outra não explica o que elas têm de “mítico”. Elas mesmas não são míticas.

Diferentemente dessas, encontramos no MAE outras máscaras representando um "ser mítico", mas que não estão assim especificadas. Trata-se, por exemplo, de algumas máscaras "com chifres de antílope", cujo figurativismo, ainda que com graus de abstracionismo, nos distancia de impressões subjetivas.

O antílope é uma fonte de inspiração artística bastante frequente na África de uma maneira geral, especialmente nas sociedades que margeiam o norte e o sul da floresta tropical. É um animal de savana, uma zona de vegetação habitada predominante no Continente. Mas não é o único animal cornudo e de face oblonga e prognática que se vê representado na tradição escultural, em particular das máscaras, apesar da profusão de "máscaras-antílope" anunciadas em catálogos e publicações de divulgação.

Com essas características existem na coleção do MAE máscaras provenientes dos Senufo, Bambara, Dogon, Mossi, Bobo, Marka, Bamileke. Embora esses povos, com exceção do último, se situem em território de continuidade geográfica, há especificidades importantes das quais não poderíamos aqui dar conta, a começar pela questão de, em vez de antílopes, estarem nessas máscaras figurados cachorros, veados, búfalos, e, pássaros, entre outros animais - "bichos" ou "seres"?

Denominadas ora "esculturas-antílopes", ora "pássaros-antílopes" ou simplesmente "antílopes", as máscaras Tyi Wara tornaram-se uma iconografia clássica das sociedades agrárias. São máscaras que saíam sempre em par, atuando na semeadura e na colheita, entre o campo de plantio e a aldeia (cf. Imperato 1971).

FIGURA 8
Fig. 8 - Topo de máscara Tyi Wara. Grupo étnico: Bambara. País: Mali. Altura: 96,5cm. MAE-USP Inv. 77/d.1.11. Foto: MAE-USP (vista lateral 3/4 esquerda).

São representadas nas coleções e museus por "adornos de cabeça", como a peça dos Senufo da Fig. 2, mas preferimos chamá-las de topos de máscara, pois são complementadas por longas fibras, do alto aos pés dos "dançarinos", além de não serem máscaras faciais. O eixo (vertical ou horizontal) é acentuado pelo prolongamento dos chifres. Paulme (in Balandier & Maquet 1968) distingue três tipos formais associados a estilos regionais do território dos Bambara. O mais conhecido deles é o vertical, simulando uma crina com motivos geométricos vazados. O MAE conserva um exemplar horizontal e dois verticais: uma réplica miniaturizada e um original (cf. Fig. 8), "representando antílope macho" (conforme listas de inventário). Os verticais são normalmente considerados masculinos, e têm a "face" parcialmente (no bico ou focinho do animal representado) chapeada com metal com incisões geométricas. Os motivos decorativos, esculpidos ou forjados, assim como a pintura e a aplicação de metal são um recurso plástico muito usual não apenas em outras máscaras faciais dos Bambara, como também característico de uma máscara dos Marka (Mali e Níger), que, "disposta em pares", segundo Leuzinger (1960: 72), se prestam a "representar a côrte que um homem faz a uma mulher" (Fig. 9). Esta, que pode ser considerada uma "máscara-capacete", apresenta uma figura de queixo pontudo, cuja fronte possui dois prolongamentos pontiagudos esculpidos e quase paralelos. Eles podem aludir a um zoomorfismo, mas, na falta de outros dados, é mais prudente que sejam tomados como recursos de abstração figurativa e não temática.

FIGURA 9
Fig. 9 - Máscara. Grupo étnico: Marka. País: Mali. Comprimento: 34cm. Madeira, tecido, metal. Revestida de metal na parte inferior central; dois círculos de metal com textura pontilhada aplicados na fronte, bem como nas duas hastes laterais, onde há sobras de pano vermelho original. MAE-USP Inv. 77/d.1.49. Desenho: Lisy Salum (vista de topo). Foto: MAE-USP (vista lateral; conforme uso?).

Pode-se dizer que o tema do pássaro-antílope na escultura de máscaras, particularmente visto nas Tyi wara (Fig. 8), é mais ou menos generalizado nas confluências do atual Mali e Burkinafasso, reconhecido especialmente na plástica dos Bobo-Fing e Bwa, permitindo-nos apresentar aqui uma peça dos Bobo (Burkinafasso) cadastrada no MAE como "adorno de cabeça representando antílope-pássaro" (Fig. 10) - outra "máscara-capacete". Nela podemos observar, além da suposta identidade temática, uma similaridade gráfica-formal entre seus motivos pictóricos com os entalhados nas Tyi wara verticais.

FIGURA 10
Fig. 10 - Topo de máscara. Grupo étnico: Bobo. País: Burkinafasso. "Velha e muito usada" (conforme listas de inventário). Altura: 16cm. Madeira policromada. Motivos decorativos pintados. MAE-USP Inv. 78/d.1.8. Desenho: Lisy Salum (vista de topo). Foto: MAE-USP (vista frontal; conforme uso?).

O interessante é que tyi wara, originalmente, não é exatamente nem antílope, nem pássaro. Animal civilizador, ele é filho da terra e de uma serpente. Com garras e um bastão pontudo, ensinou-os a revolver e a cultivar o solo. Quando veio a abundância, os homens começaram a disperdiçar e Tyi Wara, decepcionado, enfiou-se na terra. A máscara, então, foi talhada em sua memória. Como um trabalhador incansável, a dupla de máscaras saltitava sobre o solo, à moda do ser mítico que lhe inspirou, numa dança que é "uma propiciação dos espíritos da terra perturbados com a atividade dos homens (...), ao mesmo tempo que um rito mágico de fecundidade" (Paulme in Balandier & Maquet 1968: 22).

A variação de elementos formais da máscara e a alteridade do personagem do tema-enredo afinal é antílope, pássaro ou serpente? - nos remete à Awa, associação de máscaras dos Dogon, que conjuga antílopes e outros animais. Encabeçados pela máscara Kanaga, ela "dança o sistema do mundo", usando uma figuração corrente na obra de Marcel Griaule, a partir da imagem da cerimônia do Sigui (de fertilidade e renovação de força vital) transmitida por seu informante Ogotemmêli: "é o sistema do mundo se movendo em cores" (Griaule 1966: 179-80).

Observa-se que dessas máscaras dogon, o MAE possui dois exemplares. Um deles é a Kanaga, que significa "pássaro", embaro sua forma tenha sugerido primeiramente, no Ocidente, uma "cruz de Lorraine" (), sendo às vezes assim chamada na literatura de divulgação. Ela pertence à associação funerária, ativa e registrada em anos recentes nos funerais que os Dogon renderam ao etnólogo Marcel Griaule, celebrizado pelo convívio durante décadas entre eles. O outro exemplar é uma "máscara de madeira cam chifre de antílope" (Fig. 12, abaixo à direita). Apesar da semelhança com máscaras dos Bambara - com quem de fato os Dogon partilham de uma mesma tradição plástica e cultural – ela tem tudo para ser um autêntico exemplar dogon, não apenas pelo estilo, motivos decorativos, mas sobretudo pelo tipo de talhe, e pelo procedimento técnico de corte e modelagem escultural. Mas ela não tem similar nos catálogos especializados, nem tampouco foi descrita na literatura específica (cf. Griaule 1963).

FIGURA 11 e FIGURA 12
À esquerda: Fig. 11 - Máscara Kanaga. Grupo étnico: Dogon. País: Mali. Altura: aprox. 75cm. Madeira com manchas de pintura preta, encaixes e amarrações por fibras. MAE-USP Inv. 77/d.1.58. Desenho: Lisy Salum.

À direita: Fig. 12 - Máscara zoomórfica. Grupo étnico: Dogon. País: Mali. Altura: 69,5cm. Madeira escurecida. MAE-USP Inv. 77/d.1.1. Desenho: Lisy Salum.

Tudo isso para dizer que as máscaras Tyi wara dos Bambara, assim camo as da associação Awa dogon que "representam o mundo", tinham algo referente a uma consciência de espacialidade, que não é somente da circunscrição política ou da economia, mas do meio ambiente e do ethos cultural, muita própria à discussão dos mitos e das máscaras. Mas isso também nos leva de novo ao ponto de partida, colocando em dúvida todo esforço de interpretação, parecendo-nos, sobretudo, ser desnecessário "decifrar" a máscara - mesmo que saibamos: sim, é um antílope! - sem ter o "conhecimento local" a que se refere Geertz (1994).

O mito e a máscara
Para tentar refazer uma "leitura" de uma "máscara-antílope" a partir do objeto tomemos par base uma magnífica máscara da coleção do MAE (Fig. 13, ver abaixo). Ela provém dos Guro (Costa da Marfim). Essa máscara impõe-se pela precisão de talhe e acabamento, pela robusteza de formas e elementos, e pela policromia vigorosa. Cabeça de antílope; três escarificações ou cicatrizes na fronte; boca aberta, à maneira da de um réptil, guarnecida de dentes esculpidos. Ela se enquadra na tipologia de máscaras Zamble dos Guro estabelecida em Kacou (1978).

FIGURA 13
Fig. 13 - Máscara Zamble. Grupo étnico. Guro. País: Costa do Marfim. Altura: 38cm. Madeira polida, com policromia em vermelho, branco e preto. MAE-USP Inv. 77/d.1.57. Desenho: Lisy Salum (vista frontal conforme uso). Foto: MAE-USP (vista lateral 3/4 direita inferior, pela base).

O termo zamble de fato não é desconhecido na literatura especializada, designando máscaras similares a essa, ou com essa descrição (cf. Segy 1976, entre outros). Mas recorrendo mais uma vez à tipologia de Kacou (1978), encontramos uma segunda variação das máscaras Zamble: rosto humano encimado por dois cornos acima da cabeça e boca aberta; três tríades de escarificações verticais na fronte, e, sob os olhos, duas horizontais.

Parece claro que sendo cabeça de antílope ou rosto humano, a principal especificidade da máscara se encontra no termo zamble, sendo inevitável reportar-se de novo ao mito. Segue-se o resumo de uma lenda que trata da origem da máscara Zamble, conforme exposta em Kacou (1978: 78-9):

Um caçador se deslumbra com um ser da savana "veloz como uma pantera, inteligente como o Homem e elegante como um antílope". Inteligente e veloz que era seu alvo, o caçador consegue rendê-lo extenuado pela perseguição insistente, e aprisionou sua presa ofegante num esconderijo interditado. Mas a mãe do caçador, rompendo a interdição, foi ao esconderijo e viu o animal, motivo pelo qual o caçador a matou. Em seguida esculpiu uma máscara. A máscara teria a boca aberta, como que ofegante, aludindo ao mito. Chamou-a de Zamble, que significa "comedor dos bens de seu proprietário": ela foi feita para perpetuar a lembrança de sua mãe e do ser da savana. A partir de então, ao ser perguntado como corria o Zamble, o caçador-escultor, vestido com a máscara, imitava seus saltos, daí originando-se a dança Zamble, executada particularmente em funerais de homens sábios.

A semelhança entre os personagens Twi Wara e Zamble é fascinante: meio-homem, meio-animal, os dois seres civilizadores entram no "mundo dos homens" sob forma de máscaras. Mas é inevitável romper o devaneio, lembrar que um é "antílope-pássaro" e o outro é "antílope-leopardo" mas, sobretudo, que são máscaras claramente diferenciadas, de origens e sociedades diferentes, sendo providencial a reflexão de Lévi-Strauss (1979: 124): "(...) Uma máscara não é aquilo que representa, mas principalmente aquilo que transforma, isto é, o que escolhe representar. Como um mito, uma máscara nega tanto quanto afirma. (...)". Diferentes mundos de idéias interpretativas - da universalidade e da especificidade (nossa, dos Bambara e dos Guro) -, nos oferecem a possibilidade de tratar as máscaras como sistema de idéias e não sintomas, parodiando Geertz (1994: 146).

A máscara Zamble era usada, sob a égide de uma associação, em danças sagradas e em cultos funerários (Kacou 1978); Segy (1976) menciona outras ocasiões, como, à noite, para "caçar feiticeiros"; para Leuzinger (1961) "serve de máscara de guerra". Seria pertinente, aqui, evocarmos também o binômio natureza-cultura. Em um número especial sobre os Guro da Swissair Gazette, que inclui três artigos sobre máscaras de E. Fischer, entre outros, vê-se reproduzida uma notável foto de contexto da máscara Zamble (Fischer 1985: 27). Nela observa-se que "a indumentária da máscara conjuga materiais da floresta virgem (fibras, pele de leopardo) e da aldeia (pano tecido)".

O ponto de compatibilidade de todas essas atribuições da máscara poderia estar na noção de território, predominante na construção cultural de todos os setores emergenciais das sociedades africanas tradicionais, o que é especialmente assinalado no clássico de Evans-Pritchard (1978). Considerando o mito em que se origina, é natural dizer-se que a máscara Zamble engendra uma forma imaginária de "assegurar a vida coletiva em todas as suas atividades" (Laude apud Kacou 1978: 81), tendo em vista a importância da caça nessas sociedades agrícolas. Isso é reforçado pela economia pré-colonial dos Guro centrada na caça (Tauxier apud Kacou 1978). Isso explicaria as várias funções da máscara e também sua fonte de inspiração: da mesma forma que as Tyi Wara - sob forma de pássaro-antílope - se afinam ao tema da agricultura, as Zamble - sob forma de antílope-leopardo - remeteriam ao espaço da caça.

Mas não parece bastante relacionar o modelo econômico com o personagem mítico. No caso da máscara Zamble dos Guro, haveria de se considerar uma relação intrincada entre caça, guerra, agricultura, sistema de propriedade, parentesco, etc. E, finalmente, tudo isso pareceria mais significativo do que a própria máscara, especialmente tendo em vista, entre outros fatores, a importância da figura materna no mito, e o fato de a dança Zamble se dar ainda que "excepcionalmente no casamento de uma jovem da família [associação] Zamble para 'assentar' seu lar", segundo Kacou (1978: 78).

Observando uma nuance entre função, uso, e ocasião é interessante ainda notar que conforme informantes de Kacou (1978), a máscara teria tido duas "funções" consecutivas: só podia ser utilizada para "adorar", depois de ter sido usada na dança. Hoje é utilizada em festas populares, como registrou Segy (1976: 243), evidenciando-se outros caminhos de investigação, que não é mais do mito, mas da atualidade da máscara, muito mais um problema de uso e ocasião, do que propriamente funcional.

Isso não elimina seu papel de intermediação, como é o de outras máscaras. De acordo com Kacou, como foi dito, o uso primordial da Zamble seria funerário, o que nos faz retomar o tema da "ancestralidade" na plástica africana. Mesmo assim, independemente da razão tempo-espaço dessa "ancestralidade", ela resta - mais do que antílopes, leopardos e répteis - materializada na máscara. E é nesse nível que ela deveria se apresentar, viva, diante de nossos olhos.

É evidente que, em uma sala de exposição, como espectadores, não precisamos nos furtar, caso ele surja, de um "sentimento místico" diante dessa máscara, mas é certo também que, tomando conhecimento da sua história de origem, seremos capazes de usufruir muito mais do pensamento e existência do "outro" - que essa máscara concretiza - em vez de deleitarmo-nos num mistério diletante e ensimesmado. Esse exercício que a Antropologia traz à construção do conhecimento parece muito compatível com o papel da máscara africana nas sociedades tradicionais, de reprodução e de reciclagem do mito.

Antes de sabermos que zamble é nome de máscara, nome de dança e de "mascarado", e que tudo isso é inspirado em uma cena de enredo - num mito -, não seria de se estranhar que muitos de nós viéssemos a conceber essa máscara, como qualquer outra máscara africana, como fruto de religiosidade - mais "mística" que "mítica" - dissociando sistemas de crenças dos sistemas sociais. O tema não é inusitado e Lévi-Strauss (1976) nos ajuda a perceber que os mitos podem nos parecer tanto "sistemas de relações abstratas", como "objetos de contemplação estética".

Diante dessas máscaras somos obrigados a dicernir arte e mito, e não é por acaso que propusemos uma inversão da leitura a que estamos condicionados a fazer de uma "máscara etnográfica", por oposição a uma "máscara teatral". Tanto uma como a outra são necessariamente "cênicas", mas só podemos falar isso agora, depois de tentar integrar a máscara dentro de seu próprio contexto, mesmo que seja ele a parede da vitrine, desde que seja ele descontaminado de pressupostos.

O mito da mística
Não se pode dizer de predominância de feições zoo-antropomórficas na máscara africana diante de peças como a dos Dan (Costa do Marfim, Libéria e Serra Leoa), difundidas pelos artistas e críticos da Europa no início deste século. Foram renomadas pela combinação de planos côncavos-convexos. Delas o MAE possui apenas um exemplar (Fig. 14, ver mais abaixo, à esquerda), uma peça de menor rigor estilístico-formal se comparada à produção que lhes foi característica. Inspiraram obras como uma instalação-escultura assinada por Arman em 1972, que tem muito a ver com o nosso assunto. No mínimo extravagante, essa obra - que aglutina num bloco de poliester 26 máscaras autênticas e tradicionais dos Dan - intitula-se Accumulation of Souls, ou "Acumulação de almas" (cf. reprodução em Rubin, Vol. I, 1988: 81). Himmelheber (apud Verger-Fevre 1982) reconhece três categorias de mascáras dan na Libéria: as "de circuncisão", as "de função social e pacificadoras" e as "de divertimento". A máscara que está no MAE poderia enquadrar-se nas que são destinadas a proteger uma criança ou uma mulher que se muda em casamento (cf. Verger-Fevre 1982: 58). Nenhuma delas são "almas", "espíritos", nem propriamente "personificações".

Os Guro, apesar de serem reconhecidos através da máscara policromada Zamble, também produziram máscaras faciais antropomórficas e naturalistas. Apesar de sua origem não ter sido ainda estabelecida com precisão, eles teriam vindo do norte, em época anterior à instalação dos seus vizinhos Baulê no início do XVIII, de quem teriam tido o modelo, segundo vários autores, para criação de sua máscara facial antropomórfica. Temos um exemplo dela no MAE, de extrema simplicidade e beleza (Fig. 15, abaixo à direita). Ela expressa a serenidade do naturalismo das máscaras baulê-yaurê, tidas como comemorativas, ora identificando um estatuto social, ora usadas em ritos de culto de antepassados (Leuzinger 1961; Holas 1973; Segy 1976, entre outros), não deixando de ter um certo grau de personalismo. Talvez por isso a máscara guro do MAE tenha sido cadastrada como "máscara possivelmente mortuária".

FIGURA 14FIGURA 15
À esquerda: Fig. 14 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Dan. País: Serra Leoa. Miniatura (para crianças? emblemática?). "Antiga" (conforme listas de inventário). Altura: 24cm. Madeira escurecida. MAE-USP Inv. 78/d.1.18. Desenho: Lisy Salum.

À direita: Fig. 15 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Guro. País: Costa do Marfim. "Antiga" (conforme listas de inventário). Altura: 31cm. MAE-USP Inv. 78/d.1.17. Desenho: Lisy Salum.. Na coleção do Museu há três exemplares baulê e dois yaurê, merecendo um estudo em separado, pela diversidade tipológica dentro do conjunto de mesma procedência (os Yaurê, um grupo étnico pequeno da Costa do Marfim, muitas vezes são tomados por seus vizinhos Baulê, ou como sub-grupo deles). Apresentamos breve descrição de cada uma delas, alimentando esse propósito.

O primeiro exemplar é uma "máscara miniatura" (Fig. 16, ver mais abaixo, à esquerda), com ranhuras no topo da cabeça, à guisa de um penteado. O rosto ovalóide, a fina definição dos elementos faciais e a polidez da superfície nos faz lembrar das máscaras dan, acima mencionadas.

Já citado no início (Fig. 6), no segundo exemplar destaca-se a decoração em fibras e cauris, que dão ar expressionista aos traços antes extremamente serenos quando da escultura original, se pudéssemos destituir da máscara o material que foi sobreposto à madeira esculpida.

O terceiro exemplar (Fig. 17, mais abaixo, no centro), finamente esculpido, é encimado por dois pássaros justapostos pelos bicos. Possui como o anterior um "tratamento decorativo", representando escarificações raciais típicas e outros signos gráficos na plástica da região como os zigue-zagues, entre outros.

De talhe mais delicado, o quarto exemplar (Fig. 18, abaixo, à direita) é também encimado por um pássaro, que se verga em direção à fronte da máscara. Circundando o rosto, vê-se esculpida uma serpente, cuja cabeça erige-se acima do topo da máscara. Essas duas formas, uma curvada para baixo, e a outra, em sentido helicoidal, para cima, garantem uma dinâmica dos elementos que compõem a máscara, enfatizando sua expressão hierática, típica dos ancestrais representados na estatuária.

FIGURA 16 / FIGURA 17 / FIGURA 18
À esquerda: Fig. 16 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Baulê. País: Costa do Marfim. Miniatura (para crianças? emblemática?). "Antiga com traços de uso" (conforme listas de inventário). Altura: 19cm. Policromia em vermelho, branco e preto nos olhos, nariz, boca e ouvido. MAE-USP Inv. 78/d.1.22. Desenho: Lisy Salum.

Ao centro: Fig. 17 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Baulê. País: Costa do Marfim. Recente. Altura: 24cm. Madeira escurecida. MAE-USP Inv. 78/d.1.21. Desenho: Lisy Salum. À direita: Fig. 18 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Yaurê. País: Costa do Marfim. Altura: aprox. 45cm. MAE-USP Inv. 73/10.3. Desenho: Lisy Salum.
O quinto exemplar(Fig. 19), como os anteriores, é uma máscara enquadrada por uma moldura de zigue-zagues e várias hachuras cuidosamente gravadas em baixo relevo no topo do crânio, onde se encontra assentada uma forma estilizada muito próxima à de um pássaro: uma massa trifoliada que vai se alongando em direção ao topo, quando se verga em direção à fronte abaulada da máscara.

FIGURA 19
Fig: 19 - Máscara antropomórfica. Grupo étnico: Yaurê. País: Costa do Marfim. Recente. Altura: 47 cm. Madeira com policromia escurecida. MAE-USP Inv. 78.d.1.12. Desenho: Lisy Salum. Foto: MAE-USP (detalhe superior, vista de perfil).

Esta última máscara é mais rígida e estática que as anteriores. É interessante que se observe a boca cilíndrica, vazada e proeminente: um sinal do "sopro vital"? Afinal sabe-se do quanto o poder da palavra falada é denotado na plástica africana, tendo por exemplo clássico as machadinhas de aparato, símbolo de prestígio dos escultores em sociedades tradicionais do centro-sudeste do Zaire (cf. descrição de um desses objetos em Hampaté-Bâ 1979: 17).

Mas é na decoração - facial e dos penteados - que é comum verem-se assinalados elementos do significado das máscaras yaurê e baulê. Vemos em KiZerbo (1979: 10), uma peça baulê muito semelhante à da Fig. 19, mas com o toucado em forma de disco: as ranhuras longitudinais simbolizariam "raios luminosos das divindades celestes", e a sucessão de pequenos triângulos em torno do seu rosto representariam "gotas de chuva".

Talvez parecesse precipitado do ponto de vista interpretativo, mas, numa apreciação formal, não seria descabido associar o cimo dessa última máscara à forma do pássaro Calao dos Senufo. Esse pássaro é sempre muito estilizado, e nele destacam-se o "bico fecundador" e a "barriga da futura mãe" (Holas 1978: 150). Representado em grandes esculturas formas polidas e arredondadas, assentado frontalmente e na vertical, seu corpo é constituído por uma grande massa ascendente que se alonga para então formar a cabeça da qual descende a haste formando o bico orientado ao ventre protuberante. Os Calao aparecem em quantidade em coleções apenas nos anos 1950, momento em que, segundo Herold (1989: 29), cultos iconoclastas se difundem entre os Senufo. Até então essas estátuas eram colocadas perto de aldeias, nos "bosques sagrados", acessíveis apenas a iniciados.

É oportuno que se diga que apesar dos Yaurê e dos Baulê, assim como os Guro atrás mencionados, sejam avizinhados há dois ou três séculos dos Senufo, todos são povos diferentes. Desse modo, se houver alguma convergência entre a máscara e a escultura, ela deve ser encarada, aqui, em princípio, como plástica e não étnica.

Foi essa imagem - a do pássaro Calao - que nos vinha quando descrevíamos o cimo da máscara yaurê (Fig. 19), e ao chegarmos à protuberância da boca, pareceu-nos impossível, como que reforçando símbolos da plástica senufo, deixar de lembrar da presença no MAE de uma peça muito importante, cadastrada como "máscara ancestral" dos Senufo (Costa do Marfim) que também tem um prolongamento cilíndrico configurando a boca (Fig. 20). É interessante que nessa máscara senufo também se observe o talhe, no mesmo bloco matriz e no topo, de uma figura feminina de ventre inflado. Essa figura, através da imagem de fecundidade, é perfeitamente compatível com a idéia de "sopro vital" construída a partir da configuração da boca, e ambos os fatores justificam, e podem explicar, o fato de ela ter sido cadastrada como do “culto de ancestrais".

FIGURA 20
Fig. 20 - Máscara zoo-antropomórfica. Grupo étnico: Senufo. País: Costa do Marfim. Provavelmente Máscara Kpeliê. "Antiga" (conforme listas de inventário). Altura: aprox. 45cm. Madeira pintada, tecido e cauris. MAE-USP Inv. 75/4.20. Foto M. Isabel Fleming (vista lateral 3/4 direita).

Infelizmente não temos dados específicos dessa máscara, a não ser sua proveniência. De fato, ela contém elementos formais-estilísticos de um tipo de máscara chamado "kpeliê" de origem senufo: dois pares de hastes voltados para cima e dois para baixo, uma aba trapezoidal de ambos os lados na altura das orelhas, além de um prolongamento cilíndrico da boca e do queixo e incisões de elementos gráficos.

De algumas informações sobre a ocasião de uso das Kpeliê - "festivais de fertilidade", "ritos funerários", proteção da aldeia (cf. Segy 1976) - destaca-se o fato de ela "representar o defunto", sendo a ela creditado o papel de "guiar o espírito ao território dos mortos". Mas não se podendo atestar a generalidade dessas informações, é mais conveniente que essas máscaras sejam consideradas "iniciáticas", como nos transmite os trabalhos de B. Holas. Segundo o autor, a máscara kpeliê toma diversas formas e nuances em diferentes agrupamentos senufo; ele nos dá um exemplo bifacial que considera "provavelmente resultado de uma contração funcional". Um sinal do apotropaismo (postura ou movimento de ataque e defesa) característico da estatuária africana?

Na análise estilística de uma máscara do tipo "kpeliê" a maior parte dos autores destaca que, como os componentes morfológicos da máscara, a decoração alude a formas de existência terrestre - homens e animais. As excrescências sobre o contorno são, de acordo com Himmelheber (apud Herold 1989: 30), remígios, retrizes e patas do Calao, e a fronte abaulada, perfaz sua garganta - seu colo? seu seio? Afinal, a máscara Kpeliê está, segundo Holas (1978: 92), sob a égide do Pássaro Calao que simboliza a natureza celeste, e participa de sequências de dança cuja finalidade é de lembrar as diferentes etapas da criação, e também "de contribuir com os movimentos do mundo, tendo como centro a noção de força vital."

Diante dessa citação, podemos considerar que não estivemos tão ao largo quando relacionamos a boca das máscaras senufo (Fig. 20) e yaurê (Fig. 19) ao "sopro vital". E não é que as ranhuras de uma máscara dos Yaurê poderiam ser, como depreendemos de Ki-Zerbo, da mesma natureza - celeste - do Calao dos Senufo? Ainda que no meio de sobrevôos geográficos e flutuações do imaginário (deles e nosso), o que é inevitável recuperar desse discurso é sua semelhança com o de M.Griaule sobre a associação de máscaras dos Dogon ... ela dança a marcha do mundo, ela dança o sistema do mundo...

E aqui, onde se encontra motivo para retomar a discussão sobre mitos, aparece a chance de prosseguir pelo viés da arte, e da máscara. Nesse ponto encontra razão a análise de Boas (1945) sobre os valores que ele atribui às artes plásticas e decorativas, se pudermos isolar da máscara o tratamento de superfície e, da estátua, o talhe estrutural. Nesse caso veríamos constatado que, na África, a produção tradicional de estátuas era mais representativa enquanto que a de máscaras era mais simbólica, muito embora restritos ao plano formal. O estudo de Jamin (1979) examina a precipitação de atribuir-se um caráter sagrado, e simbólico, a certas máscaras dos Senufo, que o autor encara como mais dramático, na qualidade que teriam como instrumentos alternantes entre a "ordem do rito e do religioso" e a do "teatro e da representação". Vai daí o caráter espetacular de algumas máscaras africanas que no plano social era mais "concreto" do que "simbólico".

É indiscutível, porém, que no centro disso tudo estava o Homem por quem e para quem a produção estética estava originalmente destinada. Os critérios de avaliação são diferentes e os de interpretação devem ser dialetizados (cf. a esse propósito o artigo de Borgatti 1982)

. Por isso, seria interessante se pudéssemos agora retomar a palavra mítico pensando num tempo imemorial, mas que se rememoriza, que se atualiza, cujo abstracionismo se revigora no real. Mesmo diante da força interpelativa das máscaras, talvez isso nos ajude a distanciar-nos, não das feras e da selva, mas de sua sedução, já que sua imagem não é "deles", mas nossa e estará sempre presente dentro de nós.

Poderíamos então compreender porque é tão corrente dizer-se que máscaras africanas representam um "ser mítico", dando-nos conta, ainda que por símbolos, da origem nuclear e dinâmica de nossa própria visão de mundo e da interferência do nosso imaginário na razão interpretativa. Isso, no mínimo, preservaria a integridade do elemento sensível da máscara na sua forma material.

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